ÉTICA CRISTÃ
(Texto 1 para leitura extraclasse e comunicação
oral em classe nos dias 3,4,10,11 de outubro)
QUÃO BOM É DEUS - Seria o Deus do Antigo Testamento carrasco e sedento por sangue?
(ANALISANDO A ÉTICA DIVINA NO AT)
(Luiz Gustavo
Assis é bacharel em teologia e pastor adventista em Porto Alegre, RS)
“Ouviste o que foi dito: Amarás o teu próximo
e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai
pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque
Ele faz nascer o Seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e
injustos” (Mt 5:43, 44).
“Quando
o Senhor, teu Deus, te introduzir na terra a qual passas a possuir, e tiver
lançado muitas nações de diante de ti, os heteus, e os girgaseus, e os amorreus,
e os cananeus, e os ferezeus, e os heveus, e os jebuseus, sete nações mais
numerosas e mais poderesosas do que tu; e o Senhor, teu Deus, as tiver dado
diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas
aliança, nem terás piedade delas” (Dt 7:1-3).
Amor
e destruição. Duas palavras que sumarizam os textos acima. O mais intrigante é
que essas duas passagens descrevem o mesmo Deus. Alguns cristãos, no passado e
atualmente, numa tentativa quase desesperada para solucionar essa gritante
contradição, sugeriram que o Deus do Antigo Testamento é diferente dAquele que
encontramos nas páginas do Novo Testamento. Enquanto o primeiro é caracterizado
como violento, sanguinário e mau, o segundo é apresentado como amoroso,
perdoador e bondoso.
Mas
não são apenas determinados cristãos que veem o Deus de Israel como um Deus
mau. Em anos mais recentes, alguns ateus têm se valido de certas partes das
Escrituras hebraicas para reprovar o caráter de Deus, como é apresentado ali.
Veja, por exemplo, o que o acadêmico de Oxford, Richard Dawkins, escreveu a
respeito de Yahweh:
“O
Deus do Velho Testamento é provavelmente o mais desagradável dos seres em toda
a ficção. O ciúme e o orgulho do mesmo o leva a um mimado e imperdoável
controle dos mais fracos com evidente sede de sangue e desejo de limpeza
racial. Um machista, homofóbico, infanticida, genocida, filicida, pestilento,
megalomaníaco, sadomasoquista, caprichoso e malevolente fanfarrão.”[1]
Deus
é tudo isso? Para Dawkins, sim! Ele seria capaz de adicionar uma passagem
bíblica em cada uma dessas descrições. A pergunta que surge não é outra senão: Como
entender essas passagens do Antigo Testamento que dão margem para
interpretações como a do cientista de Oxford? Abaixo, veremos dois exemplos de passagens relacionadas com a
escravidão no território de Israel e a destruição dos cananeus.[2]
Leitura equivocada
Um
erro grave cometido por Dawkins – e também por muitos cristãos atuais – é ler o
Antigo Testamento como se ele tivesse sido escrito no século 21 e para nós,
ocidentais. Ao lermos o texto bíblico, precisamos nos lembrar de que ele foi
escrito no Oriente Médio, no 2º e 1º milênios antes de Cristo. Acredite, isso
resolve muitos problemas! Em lugar de comparar leis e práticas de Levítico,
Números e Deuteronômio com leis atuais, compare com os códigos de leis dos
povos daquela região e época.
Ilustraremos
isso com o caso da escravidão. Essa foi a primeira lei que Deus deu aos
israelitas, quando eles saíram do Egito (cf. Êx 21:1-11). Na lei mosaica,
sequestrar alguém para ser vendido como escravo era um crime punido com pena
capital (Êx 21:16). Um escravo hebreu deveria trabalhar apenas seis anos para
pagar sua dívida, sendo liberto no sétimo ano sem pagar nada (Êx 21:2). Além
disso, ele deveria receber de seu proprietário alguns animais e alimentos para
começar a vida novamente (Dt 15:13, 14).[3]
Durante seu período de serviço, o(a) escravo(a) teria um dia de folga semanal,
o sábado (Êx 20:10).
Notou alguma diferença entre a
escravidão bíblica e aquela mantida em nosso país, há alguns séculos? A
diferença também é significativa quando comparamos essas passagens bíblicas com
o famoso Código de Hamurabi, rei de Babilônia, no 18º século a.C. Se algum
escravo fugisse, ele deveria ser morto; enquanto que, em Israel, esse escravo
deveria ser protegido (Dt 23:15, 16). Proteger um escravo fugitivo, em
Babilônia, era uma grande ofensa, também punida com morte, como evidenciado nas
leis 15-20 do referido código.[4]
Alguém pode questionar o motivo pelo
qual Deus não aboliu a escravidão entre os israelitas. Lembre-se de que eles
estavam inseridos numa cultura impregnada dessa prática. Mesmo que Deus a
abolisse, isso não mudaria a forma como eles pensavam. A título de ilustração,
imagine o árduo processo cultural para tornar a Arábia Saudita em uma
democracia! Mesmo que essa mudança fosse feita, ainda levaria um bom tempo até que
a mentalidade da nação fosse mudada. No entanto, a legislação israelita
oferecia um tratamento muito mais humano para os escravos, colocando escravo e
senhor em pé de igualdade (cf. Jó 31:13-15).
Sedento por sangue?
Foi somente no
século passado que a palavra “genocídio” foi criada pelo polonês Raphael Lemkin.
Não existia uma palavra capaz de descrever o que Pol Pot fez no Camboja; Mao
Tse-tung, na China; e Adolf Hitler, na Europa. Milhões de vidas foram
exterminadas nesses e em outros genocídios.[5] Quando
lemos textos como aquele de Deuteronômio, citado no início deste artigo,
deveríamos colocar Deus nesse hall da
fama sanguinário? Não. Há uma gigantesca diferença entre o que vemos no Antigo
Testamento e aquilo que aconteceu no século 20.
Que motivos levaram Deus a punir as nações de Canaã?
Abaixo veremos pelo menos quatro:
Sacrifícios humanos.
A adoração entre os povos de Canaã não era tão inocente como alguns podem
pensar. O culto ao deus Moloque, por exemplo, envolvia sacrifícios de crianças.
Vestígios arqueológicos desse tipo de prática foram encontrados em Hazor, bem
no centro de Canaã.[6] Alguns
textos bíblicos sugerem que Salomão e Manassés podem ter participado dessse
tipo de prática (cf. 1Rs 11:7; 2Cr 33:5, 6). Em Levítico 20:1-3, Deus deixou
clara Sua reação diante desse tipo de prática: pena de morte.
Homossexualidade.
Aparentemente a prática do homossexualismo não era condenada entre os povos do
antigo Oriente Médio. Não dispomos de informações diretas da prática entre os
cananeus, mas no entanto, passagens como Levítico 18:3, 24-30 com sua
condenação generalizada das práticas sexuais dos cananeus e dos egípcios pode
implicar que os habitantes de Canaã toleravam a prática do homossexualismo. Uma
ideia mais clara pode ser vista na história de Sodoma, em Gênesis 19. [7]
Incesto. Nos contos religiosos
dos cananeus, Ba’al, uma divindade bem conhecida nas páginas do Antigo
Testamento, mantinha relações sexuais com sua mãe, Asherah, sua irmã, Anat, e
sua filha, Pidray, que também era sua esposa![8]
Como uma doença degenerativa que se alastra aos poucos pelo corpo, o mesmo se
dava com a prática do incesto naquela época. No Egito, por volta do 14º século
a.C., se alguém tivesse um sonho
incestuoso com sua mãe ou irmã, era sinal de bom presságio.[9]
Bestialismo ou Zoofilia. Note a lei 199 de um código
Hitita, povo que residia ao norte de Canaã, na atual região da Turquia: “Se um
homem tem intercurso sexual com um porco ou cachorro, ele deverá ser
morto. Se tiver intercurso com um cavalo
ou mula, não há punição”.[10] Mas ainda existia espaço para mais bestialismo
em Canaã. No texto “O ciclo de Ba’al”, essa divindade mantinha relações sexuais
com uma vaca, e ela deu à luz um filho fruto dessa relação.[11]
Por que Deus mandou que os israelitas destruíssem
os cananeus? Porque Ele odeia o pecado! Tal
palavra soa estranha aos nossos ouvidos. Nossa visão quase romântica de Deus
deixou espaço apenas para o amor e se esqueceu quase completamente de Sua justiça
e santidade. Um leitor atual pode achar Elias severo demais matando 450
profetas de Ba’al (cf. 1Rs 18:40), ou Deus agindo com muita violência enviando
pragas contra o Egito (cf. Êx 7-12). A verdade é que um Deus santo não pode
suportar a maldade por muito tempo. De acordo com o profeta Habacuque, Ele não
é capaz de olhar para o mal (cf. Hc 1:13).
Quem sabe nós consideremos essas e outras passagens agressivas demais porque
ainda não descobrimos quão cruel e horrível é o mal.
Mas é necessário um equilibrio aqui. Apresentar
somente a justiça e a santidade de Deus pode nos levar para uma compreensão quase
tirana de Sua pessoa. É necessário vermos também os esforços dEle em favor dos
cananeus. Deus enviou José para o Egito com o objetivo de salvar toda aquela
região da fome que durou sete anos (cf. Gn 45:4-8). Além disto, os israelitas permaneceram
no Egito por 400 anos com o objetivo de dar oportunidade para os cananeus se
arrependerem de suas iniquidades (heb. ‘awon)
(cf. Gn 15:16). Após saírem do país dos faráos e passarem 40 anos no deserto,
até mesmo uma prostituta, Raabe, sabia o que Deus havia feito e o que Ele faria
em Jericó e em todo o território de Canaã (cf. Js 2:9-13). Os cananeus sabiam
que o juízo de Deus estava às portas. Note que Raabe foi poupada dessa
destruição. Ela estava disposta a ser regenerada desta cultura assim como Deus
estava disposto para salvar aqueles que demonstrassem profunda tristeza e
mudança diante dos seus maus atos.
É possível ver aqui um traço do caráter
de Deus revelado mais explicitamente no Novo Testamento. Em 2 Pedro 3:9, o
apóstolo nos lembra de que o Senhor “não retarda a Sua promessa, como alguns a
julgam demorada; pelo contrário, Ele é longânimo para convosco não querendo que
nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. Assim como ocorreu
com os cananitas, as oportunidades de arrependimento e salvação para um mundo
cada vez mais contrário aos preceitos divinos está chegando ao fim. Deus é
amor, mas também precisa ser justo com Seus filhos. Amor e destruição? Não.
Amor e justiça.
Quão bom é Deus? Ele mesmo respondeu
dizendo: “SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a
misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o
pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos
filhos e nos filhos dos filhos, até a terceira e quarta geração” (Êx 34:6, 7).
Luiz
Gustavo Assis é pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia em Porto Alegre, RS.
[1] Richard Dawkins, Deus, um Delírio (São Paulo: Cia. das
Letras, 2007), p. 31. Sam Harris também fez severas críticas ao Antigo
Testamento em sua obra Carta a uma Nação
Cristã (São Paulo: Cia. Das Letras, 2007).
[2]
Diversos materiais tem sido publicados sobre estes dois tópicos, entre
eles: Paul Copan, Is God a Moral Monster?
Making Sense the Old Testament God (Baker, 2011); Clay Jones, Killing the Canaanites: A Response to the
New Atheism’ “Divine Genocide” Claims, disponível em http://www.equip.org/articles/killing-the-canaanites
(acessado em 9/3/11); Stanley Gundry (ed.), Deus
mandou matar? Quatro pontos de vista sobre o genocídio cananeu (São Paulo:
Vida Nova, 2006); Roy Gane, Israelite Genocide and Islamic Jihad, Spectrum 34:3 (2006), p. 61-65.
[3]Gary
Rendsburg, The Fate of Slaves in Ancient
Israel. Disponível
em: http://www.forward.com/articles/2888/ (acessado em 9/3/11).
[4]Eugene
E. Carpenter, Deuteronomy, em Zondervan
Illustrated Bible Backgrounds Commentary, ed. John Walton (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2009), p. 1:496.
[5] O matemático judeu David
Berlinski cita duas páginas de estatísticas de massacres cometidos no ultimo
século, em sua obra The Devil Delusion:Atheism
and Its Scientific Pretensions (New York: Basic Books, 2009), p. 22-24.
[6] E. E. Carpenter, Human
Sacrifice, em The Internation Bible
Encyclopedia, ed. Geoffrey W. Bromley (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p.
4:259. Para maiores informações sobre os cultos a Moloque, ver George Heider,
Moloch, em The Anchor Bible Dictionary,
ed. David Noel Freedman (Doubleday, 1992), p. 4:895-898
[7] Gordon J.
Wenham, The Old Testament Attitude to Homosexuality, Expository Times 102 (1991),
p. 361.
[8] William F.
Albright, Yahweh and the Gods of
Canaan: A Historical Analysis of Two Contrasting Faiths (Winona
Lake, IN: Eisenbrauns, 1968), p. 126.
[9] Lise Manniche, Sexual Life in Ancient Egypt
(London: Routledge, 1987), p. 100.
[10] Harry A.
Hoffner, Jr., “Incest, Sodomy and Bestiality in the Ancient Near East”, in Orient and Occident: Essays Presented to
Cyrus H. Gordon on the Occasion of His Sixty-fifth Birthday, ed. Harry
A. Hoffner, Jr. (Neukirchen Vluyn, Germany: Neukirchener Verlag, 1973), p. 82.
[11] Hoffner, Jr., p. 82.
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